Miguel Afonso suspenso quase três anos

Miguel Afonso foi condenado a 35 meses de suspensão e ao pagamento de 5100 euros, ou seja, quase três anos, e Samuel Costa a 18 meses, ou seja, ano e meio, e ao pagamento de 3060 euros.

 

Estes foram os castigos aplicados pelo Conselho de Disciplina, Secção Não Profissional, da Federação Portuguesa de Futebol ao ex-treinador e diretor desportivo, acusados de assédio sexual por jogadoras do clube famalicense.

Eis o comunicado, na íntegra, do Conselho de Disciplina, Secção Não Profissional, onde são reveladas as mensagens enviadas às jogadoras, abordagens/conversas presenciais e comportamentos que estiveram em causa:

 

  1. No dia 3 de Novembro de 2022, o Conselho de Disciplina, Secção Não Profissional, no âmbito do PD 20-22/23, decidiu por unanimidade condenar (I) Miguel Ângelo Silva Afonso pela prática de 5 (cinco) infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo artigo 125.º, n.º 1 do RDFPF, qualificadas como muito graves, em cúmulo material, na sanção única de suspensão pelo período de 35 (trinta e cinco) meses, isto é, 1050 (mil e cinquenta) dias, e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, € 5.100,00 (cinco mil e cem euros); (II) Samuel Costa Matos pela prática de 3 (três) infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo artigo 125.º, n.º 1 do RDFPF, qualificadas como muito graves, em cúmulo material, na sanção única de suspensão pelo período de 18 (dezoito) meses, ou seja, 540 (quinhentos e quarenta) dias e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 30 UC, ou seja, € 3.060,00 (três mil e sessenta euros).

 

 

  1. O processo disciplinar foi instaurado a 30.09.2022, com caráter de urgência, visando apurar a eventual responsabilidade disciplinar dos agentes desportivos Miguel Ângelo Silva Afonso e Samuel Costa Matos por alegados comportamentos discriminatórios em função do género e/ou da orientação sexual, na sequência de notícias divulgadas em diversos órgãos de comunicação social de que o Conselho de Disciplina tomou conhecimento, bem como de denúncias anónimas apresentadas através da Plataforma de Integridade da FPF. Aquando da instauração foi determinada a suspensão preventiva dos arguidos pelo período de 30 dias.

 

 

  1. Foi criada uma equipa especial na fase de instrução do processo, tendo sido feitas 18 inquirições a vítimas ou testemunhas, inquirições dos arguidos, análise de mais de 60 documentos, para além dos suportes de áudio e vídeo das inquirições.

 

 

  1. Nessa sequência, foi deduzida acusação, notificada aos arguidos no dia 21.10.2022, e cada um deles apresentou defesa escrita aos autos, subscrita por Mandatário, requerendo, cada um deles, diligências de prova, que foram integralmente deferidas pelo Relator e de seguida produzidas. Foram, nomeadamente, feitas mais 6 inquirições a testemunhas indicadas pelos arguidos.

 

 

  1. A decisão condenatória relativa aos dois arguidos, tomada por unanimidade, assenta sobretudo nos seguintes fundamentos:

 

 

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  1. Um treinador principal de futebol, relativamente aos seus jogadores ou jogadoras, é titular de prerrogativas de liderança e de decisão, seja quanto a convocatórias para jogos, à identificação das jogadoras que serão titulares, ao tipo de treino que é realizado, entre diversos outros aspetos próprios da prática desportiva. Daí que seja pressuposto que exista uma relação de confiança e de respeito mútuo entre treinador e jogadores ou jogadoras.

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o treinador principal de futebol que troca mensagens, numa rede social ou plataforma digital, com uma jogadora por si treinada, pedindo-lhe fotografias do seu corpo, sob a promessa de que ficará sob “segredo”, procurando perceber qual a sua orientação sexual e remetendo-lhe mensagens com o seguinte teor (além de lhe telefonar várias vezes por dia, para que a jogadora lhe fizesse companhia até casa e não obstante a resistência evidenciada pela jogadora): “Sem vergonhas partilhas tudo cmg”; “Eu protejo te q nng saberá o q falas cmg ok?”; “Até quero ver esse à vontade”; “Refiro me na partilha comigo e não na vontade de fazer”; “Aaaahhhh a voz é um dos meus atributos preferidos”; “Se n gostasses ou a ficar muito triste”; “A voz conta muito das pessoas”; “Ainda ficam mais giras”; “Aos poucos relaxo mais”; “Consoante as fotos forem chegando agagaga”; “Ahhaha podes enviar as fotos q quiseres”; “Ahah anseio por essa foto kkkk”; “Ahahaha pensa cc carinho então na forma cm me vais mostrar o antes e depois ahahah”; “Ajudo te em tudo mas… Sempre em segredo”; “Pode criar maus ambientes ou problemas por se saber que te ajudo por aqui e mandas fotos etc… E em segredo tem mais piada”; “Se alguém ficasse chateado com as fotos seria chateado ou chateada kkkj”; “É justo eu saber isso ahahah” [sic].

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o treinador principal de futebol que troca mensagens, numa rede social ou plataforma digital, com uma jogadora por si treinada, pedindo-lhe elogios físicos sobre a sua pessoa e remetendo à jogadora as seguintes mensagens concretas, não obstante a resistência demonstrada pela jogadora: “Ahaha so gostas das camisas em. Mim é???”; “N és obrigada a gostar de mais mas… Caso gostes quero saber ahaha”; “Quero os meus elogios ahahah”; “E pq não agora mais um sem ser Psico ou de carácter ahaha”; “Mais uma incrível jogadora e bonita também” [sic].

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o treinador principal de futebol que questiona uma jogadora por si treinada sobre qual a sua orientação sexual e que lhe envia as seguintes mensagens, através de uma plataforma digital de comunicação, não obstante a resistência evidenciada pela jogadora e as respostas evasivas por esta dadas: “E agora quero saber tudo o q a minha voz caracteriza”; “sem tabus ou vergonhas… Ahahha”; “Tb é verdade q nunca me viste pessoalmente, e pessoalmente é que se apaixonam por mim ahahha”; “Mas a tua voz tem qq coisa q n sei explicar, juntamente à tua forma cm me tratas”; “no telefonema qd te pedi para caracterizar a minha voz deste a entender q havia mais coisas ahhahaha”; “Gosto de falar ctg. Ainda vou descobrir o porquê ahahha”; “Ou és muito distraída ou não gostaste do elogio q te deixei ahahha”; “Cmg ainda não estas à vontade ou relaxada?”; “Assim não vale… Vergonhas agora????”; “Surpreende me”; “Pelo q vejo és mt envergonhada / Confias em mim” [sic].

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o treinador principal que questiona uma jogadora por si treinada sobre qual a respetiva orientação sexual, convidando-a, em seguida, para cafés e comentando com a jogadora que gostava da forma como esta se movia, como se mexia e como se tocava, além de lhe perguntar se sentia “tesão” por si e de lhe pedir fotografias do seu corpo, não obstante a resistência evidenciada pela jogadora em responder a tais interpelações.

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o treinador principal de futebol que toca nas pernas de uma jogadora, levando esta a afastar a mão do treinador da sua perna e que ainda tenta tocar na zona das virilhas da jogadora, quando esta sofria aí de uma lesão, e que comenta com essa jogadora que estava com “boas coxas” e “boas pernas”.

 

  1. O agente da prática de tais infrações tentou, por via de comunicações diversas mantidas com as suas jogadoras, seduzi-las e ultrapassar a mera ligação profissional e desportiva entre treinador e jogadoras, o que deixou as jogadoras nervosas, desconfortáveis, tristes, sentindo-se humilhadas e constrangidas na sua liberdade e na sua dignidade pessoal, além de impotentes para contrariar aquelas condutas, tendo em conta a posição de superioridade hierárquica assumida pelo treinador principal relativamente às suas jogadoras.

 

  1. Ao insistir, reiteradamente, em questões e temáticas que colocavam uma tónica mais pessoal e íntima nas conversas e interações mantidas com as suas jogadoras, mesmo quando as jogadoras demonstravam não se sentir confortáveis ou à-vontade com tais questões, o agente da prática das aludidas infrações evidenciou um tom algo persecutório, limitativo e castrador da liberdade pessoal daquelas jogadoras e, em última análise, da sua dignidade – procurando constrangê-las a adotar o comportamento que ele pretendia e que se traduziria numa aproximação mais íntima e afetiva.

 

  1. Ao pedir que as conversas e mensagens trocadas com diversas jogadoras ficassem sob “segredo” e não fossem divulgadas ou partilhadas com terceiros, incluindo familiares das jogadoras, o agente da prática dos factos evidencia que tinha plena consciência que as comunicações e interações que mantinha com as jogadoras extravasavam o âmbito da estrita relação profissional entre jogadora e treinador.

 

  1. Pratica duas infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o agente desportivo que assume as funções de “Team Manager” e que em conversa com outra agente desportiva e comentando jogadoras da respetiva equipa, afirma que gostaria de fazer “muito sexo oral” a uma desses jogadoras e que, relativamente a outras jogadoras, socorre-se de expressões como “cheira-me a merdas lesbos”, “bicharada”, “são mesmo gays”, “fufalhada”, “lesbiquices”, “é tudo lésbicas”.

 

  1. Pratica uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF, o agente desportivo que assume as funções de “Team Manager” e que, dirigindo-se a uma jogadora, que se encontra num patamar hierarquicamente inferior ao seu, utiliza as expressões “migalhinha”, “flop”, “lástima”, levando a jogadora a chorar e ainda lhe dizendo, diretamente, o seguinte: “tiveste azar, porque isto aqui não é como tu dizes, é como eu disser. Se eu disser ‘a […] vai embora’, tu vais embora”.

 

  1. Quem profere, perante terceiros, as expressões “cheira-me a merdas lesbos”, “bicharada”, “são mesmo gays”, “fufalhada”, “lesbiquices”, “é tudo lésbicas” está a adotar comportamento inequivocamente discriminatório em função da orientação sexual, socorrendo-se de terminologia depreciativa relativamente à orientação sexual de determinadas pessoas, e assim evidenciando postura de intolerância e até desprezo face a diferentes orientações sexuais, pois tal linguagem não se revela adequada ou sequer tolerável no contexto da prática desportiva e inclusive também nunca será tolerável no quadro das relações interpessoais entre cidadãos.

 

  1. As condutas adotadas vão para além da importunação típica do assédio sexual (atualmente previsto no artigo 126.º-B do RD), sendo subsumíveis no ilícito disciplinar mais grave de Comportamento Discriminatório previsto no artigo 125.º do Regulamento, porquanto as vítimas, para além de importunadas, são discriminadas no exercício dos seus direitos fundamentais.

 

  1. O treinador principal ofendeu a dignidade das cinco ofendidas, todas com idades inferiores a 21 anos, discriminando-as por, sendo mulheres e tornando-se destinatárias das suas pretensões sexuais em função de um papel de género que lhes atribuía, não acederem aos seus avanços, todos sabendo que o facto de as ofendidas não cederem às suas investidas poderia prejudicá-las também no plano da sua prática desportiva, como efetivamente sucedeu. O “Team manager”, que também exercia autoridade relativamente às jogadoras, adotou comportamentos ofensivos e discriminatórios em função da orientação sexual, causando-lhes por essa via prejuízos também no plano da prática desportiva.

 

 

  1. Consubstancia conduta discriminatória, enquanto conduta ofensiva da dignidade em função do género, toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no género que tenha como objetivo comprometer ou destruir o reconhecimento, o gozo ou o exercício pelas mulheres das liberdades fundamentais através da sua sujeição a ofensas que com menor probabilidade seriam infligidas aos homens.
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